Este artigo foi publicado na edição de 19/03/2009 do Correio Popular, cuja autoria é de minha amiga e irmã fraterna Dra. Rosa. É gratificante para mim poder divulgar aqui em meu blog uma crônica tão sabiamente redigida e cujo conteúdo é riquíssimo e profundamente esclarecedor para o mundo católico em geral. Parabéns a Dra. Rosa.
Dores de parto
ROSA EMÍLIA M. ASSIS DE LACERDA
Após a notícia veiculada pela imprensa, envolvendo a gestação gemelar da menina de Pernambuco e os fatos que se sucederam envolvendo a ciência e a religião, entrei em trabalho de parto, no auge da minha idade sexagenária.
Contrações muito dolorosas do meu útero de mulher, de mãe, médica ginecologista e obstetra, sexóloga, cristã, católica, apostólica romana, culminam com o nascimento deste texto, que chora e berra para reflexão.
A hierarquia eclesial deixa de ter a fluidez da fonte de água viva para abraçar a rigidez da morte... Quanta frieza! Quanta prepotência que imobiliza o ímpeto criativo e a abertura para o novo! A instituição Igreja está no mundo, mas sente dificuldades em dialogar com ele, não mais tendo respostas aos anseios da vida. Prefere estar situada nas alturas dos montes, longe do clamor do seu povo. Os alicerces da instituição tremem!
O que faria Jesus que sabia transformar o poder em serviço?
O que pensaria d. Helder diante da estreiteza de certas posturas que guardam a pureza das leis e ocupam o lugar das pessoas e até do próprio Deus?
Misericórdia (que em hebraico significa ter entranhas de mãe e sentir a dor com a profundidade do coração)!
Esta é a tônica de Jesus, que viveu a igualdade numa cultura de submissão.
O mal do mundo não é a infidelidade a Deus, mas ao ser humano.
Como punir mulheres que passam por uma experiência dolorosa, traumática, penosa de uma decisão? Como punir o meu colega, o dr. Rivaldo, que diante do sofrimento buscou no feminino de sua mãe e da sua esposa, alternativa capaz de humanizar na fragilidade do momento?
O Sagrado Mistério não é alvo dos nossos julgamentos. Para este me inclino em reverência e me silencio.
A Igreja institucional não está conseguindo se adaptar à realidade porque se encastelou na sua inteligência enrijecida pelo totalitarismo. Longe da postura encarnada do Cristo, fica numa posição cômoda e centralizadora, desviando seu olhar de muitos sofrimentos concretos, sobretudo das mulheres, perdendo a percepção de que é na vulnerabilidade que se pode agir com justiça e amor.
É preciso menos Deus nas falas e mais Deus no coração.
Mas esta hierarquia, composta de homens celibatários e limitados na sua formação integral, está muito longe do movimento de Jesus.
Jesus conhecia a lei, mas entendia a contingência que o levava a desbloquear a vida emperrada e chegar à plenitude.
Como médica ginecologista e obstetra, posso garantir que, neste caso da menina de Pernambuco, se resumem dois aspectos que, de per si, caracterizam uma gravidez de alto risco: o primeiro é a gravidez na adolescência (ou infância?) e o outro, a gestação gemelar. Para nós, este capítulo da obstetrícia nos demanda atenção redobrada. E esta menina, feita brutalmente mulher, reúne as duas situações de risco obstétrico!
Não se trata de ser ou não a favor do aborto, mas de acolher com misericórdia e compaixão, respeito e empenho para cuidar.
O momento social que vivemos, pautado em valores puramente materiais, não mantém uma mentalidade abortiva? Há crianças que escapam do aborto, mas há gestantes que são abortadas pela discriminação, condenações moralistas... O útero ginecológico/obstétrico sozinho não gera vida!
Há que haver um diálogo entre a ciência e a religião, no sentido de cooperar muito mais que controlar...
Há que haver a busca de uma moral que preserve a verdade, que possa ser renovada, sem perder a integridade do ser humano, praticando misericórdia e compaixão.
Quero abrir meus braços e, com amor maternal, abraçar a menina de Pernambuco, sua mãe e tantas mulheres que sofrem.
Quero acolher no meu abraço solidário-profissional o meu colega dr. Rivaldo, que cuidou com humanidade e profissionalismo da nossa pequena mulher na sua limitação e fragilidade.
Quero, finalmente, abraçar em Dom José, no côncavo do meu ser, fraternalmente, o convexo da instituição que se afasta da mulher, tão necessária e tão rejeitada no espaço que lhe é de direito. Aos moldes do meu Mestre, quero aquecer os corações enrijecidos.
Quero oferecer sem medo a proximidade do meu feminino, que, longe de arder na fogueira da Inquisição, arde no fogo da transfiguração/ressurreição para apontar um caminho pautado no sagrado que, no dizer de Nilton Bonder, passa pela simplicidade, fortalece as escolhas, acolhe as incertezas e experimenta o limite em cujo vazio acolhe a sabedoria.
O Deus da Bíblia caminha por esta estrada.
Rosa Emília Motta Assis de Lacerda é médica ginecologista e obstetra, sexóloga e bacharel em Ciências Religiosas.
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